Belo Horizonte, “nascida” em 1897, foi inicialmente uma cidade concebida com um pensamento positivista moderno, na ponta do lápis de Aarão Reis. Moderno, não modernista. A construção do projeto da capital mineira foi a eclosão de diversos movimentos políticos, arquitetônicos e identitários nacionais cronicamente inspirados em cidades como Paris, França e Washington, EUA.
Os quadrados repetidos dentro da avenida do Contorno, porém, poucos anos depois, passariam por uma ressignificação voraz, em especial devido aos modernistas, que consagraram grande parte do que hoje é compreendido como patrimônio belo-horizontino.
A República de 1989 havia acabado de surgir, e o Brasil precisava de símbolos que afastassem o passado imperial. O desenho de Belo Horizonte nasceu nesse contexto. Com pontas do renascentismo e a crença de que seria possível erguer uma cidade “racional”, em relação tanto à forma quanto a como ela deveria se desenvolver, pesou muito, inclusive, nos anos anteriores ao início da construção.
O espaço escolhido para a criação da cidade, explica Celina Borges, professora titular da escola de arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi definido e cravado após vários estudos topográficos, ambientais, climáticos etc.
“Aarão Reis opta por um sítio que, além do clima temperado, da beleza da paisagem, tem alto valor político e cultural. (A nova capital) estaria próximo à sede do poder, que eram as cidades de origem econômica minerária. Nesse sentido, quando se reafirma essa ideia republicana e positivista, de ratificar o poder existente, mostra um sintoma de que a cidade, ou o Estado, assumiu um caráter mais moderno, ou procurava por ele, e queria usar a cidade para isso”, diz.
As primeiras construções em BH são fortemente influenciadas pelos estilos neoclássico e eclético, mas que, também, dialogavam com a paisagem e com o entendimento pós-industrial que vigorava no mundo à época. A continuidade do projeto, todavia, foi interrompida em 1911, quando foi declarada uma “falência geral” na cidade. Aportes destinados à implantação da urbanização foram cessados e, ao menos até 1920, houve um “hiato” no “progresso” de Belo Horizonte.
Contudo, o crescimento econômico repentino no final daquela década, embalado pela chegada dos reis belgas na capital e pela recém-construída ligação entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro, fizeram com que um salto cultural começasse a traçar novos caminhos para o desenho urbano. Com o “boom”, fixaram-se, até 1930, várias instituições de peso na cidade, desde teatros, casas de chá, universidades, imprensa, e espaços de convivência para a burguesia.
Também, a poesia modernista e a efervescência do movimento nas artes plásticas começaram, nesse período, a tomar conta das conversas entre intelectuais. Já em 1920, a capital tinha vários estilos arquitetônicos “em conflito”.
Um dos principais motores para a mudança da paisagem urbana, contudo, foi a criação das escolas de engenharia e arquitetura, além de os aportes para que as obras de estruturação na cidade ocorressem terem sido retomados. Celina pontua que esses fatores, geraram “demanda por uma nova arquitetura”.
A discussão do modernismo, que tomou os espaços da elite intelectual mineira, também apareceu devido à Semana de Arte Moderna em 1922, especialmente entre meados de 1927 e 1940.
“As várias pesquisas mostram que tínhamos um impacto de poetas modernistas, temos ‘A Revista’, que é um marco de publicação de várias literaturas ligadas ao modernismo. Em 1924 temos um marco interessante, que é a caravana dos modernistas de São Paulo que vieram visitar as cidades de valor histórico e passaram a Semana Santa em Minas. Tínhamos Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, a empresária Olívia Penteado. A caravana passa por Belo Horizonte e é destaque no ‘Diário de Minas’ no dia 27 de abril de 1924. Tem uma passagem de Pedro Nava em que ele dizia algo como: apesar da caravana, BH ainda amava o soneto”, continua a professora.
Após várias exposições de arte que tiveram forte presença do ideário moderno na cidade, em 1940, o então prefeito de Belo Horizonte Juscelino Kubitschek propôs a implantação de algum complexo arquitetônico na Pampulha que, na época, tinha uma represa destinada a abastecimento de água.
“Quando Juscelino se depara com aquele lago, ele pensa: ‘Aqui tem que ter alguma coisa melhor’. Ele propõe a criação de áreas destinadas às camadas médias e baixas que demandavam qualidade de vida. Ele convida Oscar Niemeyer. Daí, vamos ter um grande momento do modernismo em Belo Horizonte, muito ainda originário de influências europeias, mas uma arquitetura altamente arrojada que conseguiu explorar tanto a paisagem natural, valorizar a natureza, articulada tanto com o paisagismo quanto com a relação entre o edifício, a água etc. Outra questão importante da arquitetura modernista criada é o convite que Niemeyer faz para outros artistas – Portinari, Burle Marx e José Pedrosa”, conclui Celina.
A professora detalha, ainda, que, aquém do avanço do modernismo, há, também, em paralelo, atores que não aceitaram as mudanças propostas – o que, em muitos casos, faz com que o traço arquitetônico de Belo Horizonte tenha “competições” estilísticas até hoje. “É interessante como a cidade demonstra com as polarizações e divergências que ela se consolidou enquanto capital. O modernismo simboliza a consolidação da capital”, completa.
Harmonia moderna e libertação da linha
O pensamento moderno que formatou a cidade tinha, no centro, um viés de harmonia, de industrialização e dominância da natureza. O maior símbolo disso, talvez, sejam os córregos afogados por concreto que, antes, cortavam a região do Curral del Rey.
Belo-horizontino, Gustavo Penna, que é um dos grandes nomes da arquitetura brasileira, brinca como as esquinas são um espaço de democracia – ao invés de largas avenidas que mal se encontram, é preciso parar e ter contato com quem por ali passa.
A radicalização disso ocorreu com a ampliação dos bares na capital que, ao revés das intenções cartesianas de Aarão Reis, desobedeceu à ordem rígida dos cortes urbanos para transformar cada esquina em um universo próprio.
Isso, junto ao avanço do pensamento modernista, que foi um ponto de virada no horizonte da capital entre as décadas de 1930 e 1940, poucos anos depois da Semana de Arte Moderna, que completa 100 anos em 2022.
“Minas Gerais foi sempre uma terra síntese do Brasil, que dialogou com muitas coisas. E 1922 foi o que plantou a semente para muitos artistas. Em 1940, há 82 anos, fizemos a Pampulha e, até hoje, ela estarrece e é um símbolo da cidade. Devemos muito a esse movimento libertador, é uma vanguarda que permanece”, diz.
Na arquitetura, argumenta Penna, havia um “eixo” como rota para as construções antes do modernismo. Um exemplo citado por ele é a Praça da Liberdade, na região Centro-Sul da capital.
“(O projeto) é simétrico dos dois lados, há um fundo na perspectiva, formado pelas palmeiras, e o palácio da Liberdade. O modernismo veio para subverter isso e, talvez, tenha sido o estilo arquitetônico que mais combina, que mais é representado em um país como o nosso. O que acontece com o modernismo: liberta-se as construções do solo, elas podem voar, as janelas podem se abrir rasgadas para a paisagem, o limite severo entre o interior e o exterior é diluído. A arquitetura de fora é tão arquitetada quanto a de dentro. Paisagem e casa dialogam permanentemente”, conclui.
Via: www.otempo.com.br